O senhor Mário da Luz tinha ido para a América, como
marinheiro de navio baleiero, em 1916. Depois de aí estar algum tempo, mandou
chamar a sua mulher, denominada, Maria Chalina, para o fazer companhia. Ambos
tinham vontade de ter filhos, mas Deus não os contemplou com esse desejo.
Senhor Mário veio a perder a mulher, que morreu de
ataque cardíaco, nos “states”. Desgostoso e já de avançada idade, resolveu retornar
à terra natal – ilha de São Nicolau.
Tinha adquirido por compra, muitas propriedades:
alguns terrenos de plantio e alguns animais, portanto estava bem trabalhado e tinha
dinheiro no Banco. Eis que quando fez noventa e tantos anos, adoeceu e foi para a
cama muito mal. O que lhe salvou foi uma criada a quem se chamava Margarida,
adiante conhecida por Guida, que era boa pessoa e em quem ele depositava toda a
confiança; Guida é que tinha todas as chaves da casa.
Senhor Mário gostava muito dela, pois era educada,
muito inteligente e não tocava no que não era dela.
Senhor Mário tinha-lhe confiado até a chave do baú,
onde tinha dinheiro e objetos de ouro.
Guida era quem tirava dinheiro para as compras. Tratava
o senhor Mário como se fosse o seu pai, com todo o respeito e paciência.
Eis que finalmente o senhor Mário resolveu casar-se com
ela, e para isso falou com o padre Filipe, que veio a celebrar o casamento de
noite, de modo que ninguém tomasse fé do assunto.
Entretanto, o senhor Mário veio a piorar-se da doença
pelo que foi novamente para a cama, onde permaneceu por longo tempo.
Certo dia Guida foi chamar o doutor Camões, médico da
casa, para ver o estado do doente. Tendo-o auscultado com muito cuidado, chamou
a Guida à parte, e disse-lhe:
“Guida, a doença do teu marido não tem cura, e
ele não irá durar muito tempo”.
Eis que o senhor Mário tinha um sobrinho a quem se
chamava António João, adiante conhecido por Anton. Anton tratava o tio só com
interesse na herança. Pois que bem sabia que o tio era homem rico – tinha
dinheiro no banco e boas propriedades - e como seu tio e a mulher nunca tiveram
filhos, portanto era ele, Anton, o único herdeiro.
Certo dia senhor Mário amanheceu muito doente, entrou
em coma e consequentemente perdeu a fala, pelo que Guida mandou chamar o padre
Filipe para o ungir.
Decorridos dois dias ele veio a falecer, num domingo à
tarde.
Anton, Lígia, sua mulher e filha, foram à casa do defunto. Levaram galinhas, para fazerem a canja e carne de cabrito para fazerem o molho,
para a gente no enterro.
Momentos depois, Anton chamou a Guida à parte e foram a
um quarto, e disse-lhe:
“dê-me a chave do cadáver, Guida, como sabes, eras uma
simples criada do meu tio”.
Guida, com toda a calma que a caracterizava,
respondeu-lhe:
“coisa não é bem assim! Anton. Sentemo-nos com calma para
falarmos primeiro sobre o assunto”.
Guida, nesse meio-tempo foi ao seu quarto, abriu a mala e
sacou de uma - certidão de casamento efetuado entre ele e o senhor Mário – e
então respondeu a Anton:
“Anton, sou uma
criada, mas diplomada”.
Acontecera porém, que todos os bens do senhor Mário
estavam passados em nome de – Margarida Soares dos Pássaros (Pássaros era
o sobrenome do defunto), a única herdeira, por ser a única pessoa que cuidou do
senhor Mário nos últimos tempos.
Eis que Anton, espantado e cheio de raiva, chamou sua
mulher e disse-lhe:
“Lígia, não mates galinhas, porque a herança não é nossa”.
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Abaixo estamos publicando o conto “A
Chave do Cadáver” de Martinho de Mello Andrade, na língua Cabo-verdiana "crioulo" variante
da Ilha de São Nicolau, que é uma mistura entre o crioulo africano e o português arcaico.
Se levarmos em conta os escritos da
História do Brasil, quando os descendentes dos africanos foram proibidos, pelos
escravagistas, de falar a sua língua nativa, pode-se dizer que se isso fosse
tolerado, talvez hoje teríamos um idioma semelhante a língua escrita no conto
abaixo.
Segundo o autor Sr. Martinho de Mello Andrade
“O crioulo de São Nicolau
é uma mistura do português arcaico com alguns termos do crioulo africano,
fundidos no mesmo cadinho. O crioulo é originário do encontro de dois povos com
culturas diferentes, cores, usos e costumes, que se juntaram em lugar também diferente
para ambos e que se cederam de parte a parte em simbiose para poderem
sobreviver.”
Livro A Chave do Cadáver
Por
Martinho de
Mello Andrade
A Chave do Cadáver
Conto em língua crioulo
Conto em língua crioulo
Nho Mário da Luz, tinha bod pa Merca, cma marinher, na
nabiu de baleia, em 1916. El bá, dpois de pôc tempe, el manda bscâ sê mdjer,
Maré Nininha. Es tinha graça de tem um fidje, má Deuz ca daz el.
Nho Mário bem perdê mdjer, qu’morrê de um – heart
attack – na Merca.
Desgostoso, e já bedje, el resolve bra pa terra.
Qu’and el tchgâ na Stancha- São Nicolau - el bá pa sê casa.
El tinha comprod mut terra, regod, sequer e máss casa,
el staba bem trabadjóde.
Qu’and el tinha setenta e talona, el bem doencê mal e el bá pa cama. ‘Inda bem qu’el tinha um criada –Guida- qu’ tá trata’l mut bem e qu’el tinha tud confiança; Guida é qu’tinha tud tchabe de casa.
Nho Mário tá gosta mut d’le patchê ele era educada e
sperta e ele ca tá pô mon na cosa de gente.
Nho Mário tinha ele dode ‘té chabe de sê baú, onde el
tinha dnhêr má cosa d’or.
Guida é qu’ tá tra dnhêr pa fazê compra.
Guida tamê tá tratâ nho Mário, moda um pai, c’tud
ruspeite e pacência.
Anton nho Mário resolve casa má Guida. El fala má nho
Pad Flipe e es casa d´note, moda ninguêm ca sabê.
Nho Mário bem piorâ, e el bá pa cama, onde el steve mut
tempe doente.
Um dia Guida bái tchma dotor Camões pa spiâ’l. Dpois
q’ dotor sculta’l, el tchma Guida à
parte e el falale, Guida, doença de nho
Mário ca tem cura, e el ca esta pa dura mut tempe.
Nho Mário tinha um sobrinhe, tchmód, Anton Jon. Anton
tá trata sê tio sô c’interesse na
herancia. El sabia qu’sê tio era um home rico de dnhêr na banco e de boas
horta, e que nunca el má sê mudjer tinha tide fidje. Um dia nho Mário manchê
mut mariod, el ca staba ta fala. Es mandá tchama pad p’ ungi’l.
Dos dia dpois disse, el bem morrê, num dmingo de meio-dia-
pa-tarde.
Anton, má sê mdjer e fidja, bem pa casa de morte.
Lígia,mdjer de Anton, leba galinha má roz pa fazê canja, má cár de capód pa
modje, pa gente de nojôd.
D´pos de um bom bocóde, Anton tchma Guida, à parte
num quarte e el fala’le: Dó’m chabe de
cadáver, Guida ,cma bô sabê, bô era um simples criada de nha tio.
Guida, c’tud sê calma fala’l: côsa ca bem ‘sim, Anton!,
no senta c’calma pa no papia primer:
Guida bá na sê quarte, ele abri mala, ele tra um – um
documento de casamente entre ele e nhô Mário - e el raspondê Anton; Anton, mi ê
um simples criada, má c’diploma.
Tud o qu’ nho Mário tinha, staba passod na nome de Guida Soares dos Pássaros, única herdêra. Por ser única pessoa qu’ cuida de nho Mário durante se doença.
Anton fca spantód e tcheu de rabia, el tchma sê mdjer, sangod, e el fal’ele: -Lígia, ca
mata galinha, patchê morte ca ê d’nossa.
A Chave do Cadáver
Contos em língua crioulo
Por Martinho de Mello Andrade
A Chave do Cadáver
Contos em língua crioulo
Por Martinho de Mello Andrade
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Seu blog é óptimo,gostei dou-lhe meus parabéns.
ResponderExcluirCom votos de grandes vitórias.
PS. Se desejar fazer parte dos meus amigos virtuais, faça-o de forma a que possa encontrar seu blog para segui-lo também.
Sou António Batalha.
Caro Batalha,
ResponderExcluirMuito obrigado pela visita e a estima dedicada a nós!
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Wilson e Iolanda